5.2.10

Cotidiario I

Estava sozinho no quarto. A lua cheia ilumina a escrivaninha, deixando evidente que o café ainda estava quente. Tomou um grande gole que desceu queimando pela garganta.
O papel em branco à sua frente denunciava a falta de inspiração para escrever uma carta.
Tirou do bolso um cigarro de palha mas não encontrou um isqueiro.
Andou até a cozinha e acendeu o cigarro no fogão.

"Preciso dar uma volta."

Pegou o carro e foi até o mercado. Pensou que andar por seus corredores abarrotados de porcarias lhe trouxesse inspiração. Acabou comprando cerveja, carne de porco e uma grande faca.
Em casa, tirou a carne da embalagem, cortou dois filés e jogou na panela já aquecida. A cerveja ainda estava quente mas bebeu mesmo assim. Sem perceber, limpou a faca em sua calça.
Comeu a carne com dois ovos fritos e farinha.

"Isso está realmente delicioso."

Quando começou a assar o segundo filé, o celular toca. O som estridente sobre a mesa é acompanhado por batidas firmes à porta.

- Quem é? - diz Antônio
-Abra, preciso falar com você. - Diz uma voz feminina do outro lado da porta.
-Espere um minuto.

Antônio atende o celular mas a ligação foi perdida. "Depois ligo de volta", pensou.
Ao abrir a porta, uma mulher na faixa de 30 anos, loira e dona de belos olhos cor de mel, está vestindo um roupão amarelo cheio de manchas de café. Era a vizinha de Antônio, Melissa.

-Posso ficar aqui um tempo? Meu ex-marido me ligou dizendo que estava a duas quadras de casa e queria me ver. Eu não quero encontrá-lo. Ele parecia transtornado ao telefone.
-Claro, fique o tempo que precisar. Mas não acha melhor chamar a polícia?
-Já fiz denúncia mas nada aconteceu até então. Estou conversando com um amigo advogado.
-Melhor assim. Quer jantar? Ainda tem carne e posso fritar mais um ovo...
-Não obrigada. Mas eu gostaria de uma cerveja.
-Claro, vou pegar.

Antônio conversou com Melissa no máximo quatro vezes desde que se mudou. Ficou pensando na razão de Melissa ter escolhido seu apartamento como local de esconderijo.

No corredor ouvem-se pancadas violentas contra a porta do apartamento de Melissa. Acompanhadas por gritos furiosos. Segue-se uma discussão com outro vizinho, Renato, que afronta o homem e pede pra que ele vá embora. Enquanto isso, Melissa chora copiosamente e sufoca os sons com o travesseiro apertado contra a face. Antônio observa tudo pelo olho mágico.

-Ele já foi.
-Eu estou apavorada! - diz Melissa com o que restava de sua maquiagem escorrendo pelo rosto.
-Se quiser você pode ficar aqui essa noite. Mas prometa-me que amanhã irá procurar o seu amigo advogado.
-Obrigada Antônio, é muito gentil da sua parte mas eu já lhe causei transtornos demais. Vou me trancar em casa e torcer pra que ele não volte.

E se foi.
Antônio terminou de comer, pegou outra cerveja e voltou para a escrivaninha. Olhava para a folha em branco mas só conseguia pensar no que acabou de ocorrer.

"O que leva alguém a tal nível de irracionalidade quando um relacionamento termina? É amor ou egoísmo?"

Virou aquela cerveja e pegou outra na geladeira. No caminho lembrou-se do celular e a ligação perdida. O número não estava registrado na sua agenda mas era familiar. Ligou e uma voz infantil atendeu. Antônio ficou mudo por 5 segundos até conseguir balbuciar algumas palavras.

-Qu..quem fala?
-Aqui é o David. Já aviso que minha mãe esqueceu o celular em casa e só volta amanhã. Ai, eu não posso falar com estranhos. Quem é você?
-Um amigo dela. Eu ligo depois. Obrigado David. E não fale isso pra mais ninguém que ligar, pode ser perigoso.
-Tá bem!

E desligou. David era uma criança muito falante, sem maldade nas coisas e exatamente por isso, perigoso. Já havia prejudicado Antônio uma vez por causa de sua inocência, por sorte que não reconheceu sua voz neste momento. Mas dúvidas ficaram rondando sua mente: qual foi o motivo de sua ligação? Onde ela teria ido? E deixou David sozinho em casa?

Saiu e foi até o apartamento de Melissa ver se estava tudo bem. Bateu à porta com cuidado, pronunciando-se mas nada ouviu. Estranhou a situação e bateu novamente, dessa vez um pouco mais forte. Tentou a maçaneta e a porta estava aberta. Olhou ao redor até que sentiu um frio na espinha que se seguiu até os dedos dos pés.

Pela porta entreaberta do banheiro viu o braço de Melissa, que estava caída no chão. Correu até lá e ao entrar, tudo que viu foi uma pia cheia de comprimidos de todas as cores e o chuveiro ligado. Uma pequena poça de sangue se formava ao redor da cabeça de Melissa, que durante a queda, atingiu a privada com a lateral da cabeça.

Antônio correu para o telefone e chamou uma ambulância, explicando rapidamente o que viu. Não demoraram a chegar e enquanto os paramédicos removiam Melissa do banheiro, Antônio se esquiva da aglomeração ao redor do apartamento dela para tirar o celular do bolso e ver quem ligava.

"É o mesmo número."