21.6.06

Notívagos.

Quem falou que o homem pensa em sexo pelo menos umas 9 vezes por hora está certo. Mas quem falou também que o ser humano em geral pensa no seu lazer umas 10 vezes todos os dias está mais do que certo. E João, que trabalhava a semana inteira em uma lanchonete conceituada não estava fora desses conceitos. Seu fim de semana começava na quinta. Doses homéricas de bebida, literalmente se atracava com mulheres que facilitavam o caminho para ele e dormia pouco até o horário de seu trabalho. Chegava com cara de guerra e empunhava seu avental para a batalha diária. Sexta a noite. Tudo acertado com os amigos, o lugar, quem iria, o que fariam. Noite ótima e sábado novamente a cara de guerra. Sábado, uma festa mais tranquila, na casa de um amigo. Muita vodka, muita história para contar (para quem se lembrasse do que ocorreu) e João chegou ao domingo com muitas baixas em seu fígado mas no geral estava bem.
Levava esta vida havia mais de um ano, até que um dia o seu corpo o rejeitou.
João entrou em pânico, pois não lembrou do que fez e não conseguia movimentar nada, além de seus olhos. O estarrecimento o impedia de realmente lembrar o que aconteceu na noite anterior, sem contar aquela dor de cabeça.
"Devo estar muito bêbado ainda", pensou.
Procurou ficar quieto, esquecer aquilo tudo. Acordou novamente por causa de uma das palpitações de sua dor e viu o reflexo do relógio no espelho. Já havia passado da hora de levantar. Seu chefe descontaria o dia e aquele dinheiro era importante demais pra ele. Procurou saltar da cama mas seu corpo não obedecia. Agora já não sabia mais o que pensar. Não havia batido o pescoço para estar tetraplégico, não estava no hospital tampouco. O que poderia ter acontecido?
Até que sua mão lentamente se levanta e Jõao sente-se mais aliviado. "Devo ter usado alguma coisa muito forte".
Seu corpo levanta-se da cama e vai até o banheiro. João não consegue controlar seus movimentos, parece estar possuído por algo. Após apertar a descarga, o corpo escova seus dentes e volta para o quarto. João queria pedir por ajuda mas não controla sua boca. Pensa com força porque aquilo lhe está acontecendo e nada. Não tem resposta. Continua sem o controle dos seus movimentos.
Seu corpo pega a calça, veste, em seguida a camiseta e o tênis. Põe-se a andar pela casa, sem um rumo que ele conheça. Passa pela porta e começa a andar pela calçada no sentido oposto do seu trabalho. Acena para algumas pessoas mas nada fala.
Chega até uma casa onde nunca estive antes. Engraçado que apesar de ser a 300 metros da sua nunca tinha visto aquela residência de aparência descuidada, com trepadeiras subindo pelas janelas de madeira e uma pintura descascada, algo que parecia ser verde. Entrou pelo portão enferrujado e João estava apavorado, pois tinha medo que seu corpo se machucasse de alguma maneira. Continuou seguindo pela casa. Adentrou a sala de estar e nela estava uma senhora de aparência simpática sentada no sofá. Ela viu que os olhos de João se movimentavam freneticamente e entendeu tudo. Era mais um caso de rejeição. Marieta, quando era jovem passou por experiência semelhante e desde então uma energia natural vinda dela atraía jovens que eram rejeitados por seus corpos. Ela seguiu até um velho armário e dele tirou um frasco azul. Dentro deste havia um pequeno pedaço de papel com algumas inscrições. O corpo de João pegou o papel e comeu, logo em seguida se virando para a saída. Quando já na porta Marieta disse:
- Não se esqueça de que temos uma alma. Você deve guardar seu corpo e sua alma, caso não o faça eles rejeitam você.

12.6.06

Dia dos namorados.

Namorar em sua definição é o poder impotente de tentar controlar algo que nao te pertence mas da qual se apoderou (no caso a vida do outro). E a partir desse contexto temos o conflito no qual tudo se origina. As variantes existem e explicam alguns casos de namoros que dão certo, tornando-se uma união (ins)estável que poderá perdurar por batante tempo (tempo suficiente pra ver que você poderia ter feito outra coisa da vida).
Para quem namora eu digo que namoro é uma enfermidade que sempre leva à busca no outro a cura para problemas que não existiram e até apelando para as homeopatias, as receitas caseiras de pai e mãe. Muitas vezes, inclusive, tem-se um namoro a quatro mãos ou até a seis, quando os pais namoram junto com seus rebentos e são tão pró-ativos no relacionamento que podemos chamá-los de "produtores do namoro". Mas eles nem sempre querem que o seu "programa" faça sucesso. Procuram também baixar o índice de "audiência" quando acreditam que a causa não é justa.
O momento é que define o namoro. Carnaval, copa do mundo, boates e épocas de TPM feminina não são bons momentos para o namoro, mas em contrapartida o frio é interessante pois a mulher sente-se mais carente e como (geralmente são mais franzinas) procuram instintivamente um par para aquecê-las (entenda como quiser). Nesse meandro está o dia dos namorados, que nada mais é um dia apaziguador para os casais lutadores ou um dia qualquer para quem consegue levar a união numa boa. Mas independente da felicidade ou não, quem está sorrindo é o dono do restaurante onde você irá jantar esta noite, mesmo que amanhã o dia seja palco de uma guerra.

6.6.06

Prosopopéia ilidíaca

Metonímia estava fazendo seu passeio matinal pelos arredores do Castelo de Sinfonia. Seu câo Teorema acompanhava cada passo seu com entusiasmo e vivacidade. Logo que chegaram ao lago oval, Teorema empreendeu uma parábola imaginária com duas elipses e chafurdou naquelas águas cândidas.
"Teorema, cuidado! Não vá para aquela região nebulosa, irá naufragar!"
Teorema, como não falava provérbios, não compreendeu e naufragou.
Metonímia prantava como nunca se havia feito em Sinfonia. Os vetores mais longínquos ouviam suas melodias vociferadas que clamavam pelo retorno de Teorema do lado negativo.
E assim, vários ciclos se passavam e Metonímia não parecia mais ser aquela expressão feliz como sempre se via. Estava agora sádica, já não via mais os louros da vida e sua juventude havia se tornado uma grande metástase.
Num dia aleatório, Metonímia despertou cedo, despiu-se da sua pele de sonhos e conjugou alguns verbos para a vernaculização matinal. Mas desta vez, sem Teorema.
Mal conseguia ver as figuras de linguagem que a mata escondia. Procurou ir ao objeto direto e chegou ao lago Oval assim que o sol elocubrava suas primeiras farpas de luz.
Algo incandescente dentro dela a fazia ir atrás de Teorema. Mergulhou e foi até a região nebulosa. Sentiu-se como que succionada para dentro daquele cunho. Apagou.
As fendas de seus globos se abria vagarosamente. Uma luz esparsa condoía as vistas. Perguntou-se se aquele era o céu de que tanto recitavam. Rearranjou seus pensamentos e procurou pelo sujeito da situação. Notou que não havia nada de diferente do seu contexto e logo ouviu um latido.
"Teorema! Achei que você havia sido extirpado! Que bom que está aqui. Me sinto alocada!"
Teorema e Metonímia encontraram um ponto de exclamação e por ele conseguiram sair daquela frase. Buscaram o caminho de volta para sinfonia e encontraram tudo destituído. Não havia sequer uma conjunção para explicar o que houve ...

2.6.06

Votar em quem?

O voto deve ter nascido juntamente com os homens da pré-história,
quando o exímio caçador do grupo conseguiu, ao final de um dia de caça, pegar um mamute e provavelmente quis ficar com toda a carne para si, sendo que os outros do grupo mal conseguiram uma lebre. Algum membro brilhante do grupo teve a mais brilhante ainda idéia do voto e, desde então a humanidade mudou. Bem, não mudou tanto porque uma pesquisa recente descobriu que os macacos elegem o líder de seu bando por um voto (não é esse voto obrigatório que conhecemos, uma vez que qualquer macaco resignado pode retirar-se do grupo e adentrar a outro - seria isso uma migração partidária?). Enfim, todos os membros do grupo desfrutaram da deliciosa carne de mamute (o fogo já havia sido inventado e patenteado por Tug, o iluminado) e assim não tiveram que matar seu companheiro.
Mas, no viés da invenção democrática e da evolução (cambial? não.), aparecem os ditadores, reis, líderes bárbaros e líderes do partido dos trabalhadores. Tudo isso vai contra o voto e a democracia uma vez que o que é acumulado nao pode ser dividido com os outros, a não ser que você tenha um relacionamento direto com algum dos elementos supra-citados. E isso não acontece por acaso. É quase uma predestinação, um elemento "divino" ou até "Dantalino" (como nos contos modernos de Lewis Carrol, mas adaptado à realidade "Lulanesca" brasileira).
Maestral também a adaptação do voto obrigatório, diferentemente dos macacos, para eleger nossos representantes. Mas não adianta debandar para outro grupo, pois este líder é onipresente. E não existe possibilidade de devolução ou extermínio em caso de defeito. Ah, no final das contas, os culpados pelo fracasso de algo somos nós, que fomos obrigados a votar sem opções, uma vez que só mudam as máscaras, o conteúdo é o mesmo.
Anule seu voto.

7.5.06

Extra! Extra! A bunda vem conquistando espaço no mercado de trabalho!

Pesquisas recentes apontam que pessoas mais belas conseguem melhores lugares no mercado de trabalho. Mas por uma questão ética muito óbvia, não incluíram uma nova categoria que vem conquistando e pulando degraus nesta escala nada idônea: a bunda.
Além de todos os problemas recorrentes da nova situação empregatícia do país, o trabalhador agora deve se preocupar quando estiver na fila para a entrevista de emprego e uma bela bunda pleitear a mesma vaga que a sua (principalmente se o entrevistador for homem XY ou homo XX). A bunda vem galgando colocações importantes nos anais da história do trabalho e independente da capacidade produtiva do seu hospedeiro, ela sempre está em lugares de grande destaque na empresa e é importante a sua presença nas reuniões da diretoria ou simplesmente servir um cafézinho.
Mas, na sua grande maioria a competência não é analisada como fator primordial. E deixo aqui um desafio: o primeiro homem que conseguir ser grosseiro com uma linda gerente de banco que detonou sua conta, deixe aqui seu testemunho.

5.5.06

Idosos.

Aos desinformados, saibam que o Brasil é um país em fase de envelhecimento precoce. Estamos importando mais uma tendência européia: a população majoritariamente idosa.
Mas não importamos os bons modos e a cidadania.
É nossa a infelicidade de ter um Gerson e de ele ter distendido seus maxilares ao proferir palavras tão insalubres. Infelicidade também é ter seguidores fiéis que saem de casa e deixam seus bons modos e a cidadania no armário, junto com a educação. E nesse meio todo quem se atrasa é exatamente quem já tanto fez, quem não deveria ser esquecido.
Existem leis que priorizam o atendimento ao idoso em várias frentes, mas leis são feitas para pessoas e não de pessoas. Atendimento prioritário deveria incluir qualidade, educação, respeito.
Vivemos de um mal profundo chamado ignorância. Ignoramos o que vivemos, o que sofremos e o que aprendemos com isso. Deve-se sempre olhar pra trás pra não errar de novo, deve-se buscar conhecer a história e principalmente, deve-se combater o analfabetismo (a história está nos livros).
E deve-se tratar bem os velhos. Dar o exemplo e preservar a memória e a alma do país que tem muito a oferecer.

6.4.06

Vida. capítulo 7.

Foi para o banheiro e teve sensações estranhas que de alguma maneira embrulharam seu estômago.
Entrou em uma das portas e ali ficou sentado. Meia-hora se passou e sua mente viajava pelos hecatares da fazenda do seu avô. Brincava nos verdes pastos e depois, sujo e cansado, se jogava no sofá de couro marrom. Sua avó lhe trazia bolo de fubá e noutra mão, suco de melancia.
Achou a lembrança reconfortante. Caminhou até a porta do quarto e seu pai já havia saído. Ao lado da cama notou uma grande caixa branca. A companheira de sua mãe parecia assustada, mas apesar disso falou com calma.
"-Demorou pra chegar.
-Tive uns problemas no caminho, mas não deixaria de vir."
Sua mãe esboçou um sorriso e ele deitou seu rosto sobre o dela. Notou seu lábio se contrair apenas em um lado.
Adormeceu na poltrona e acordou de madrugada. Foi direto para o serviço. Chegou e percebeu que seu armário estava aberto. Suas ferramentas foram roubadas. Foi até a direção relatar o fato e foi informado que "a responsabilidade sobre suas ferramentas e demais pertences é sua, assim como o prejuízo em caso de perda ou roubo" ...

continua.

24.3.06

Vida. capítulo 6.

Procurou chegar antes ao bar. Ficou do outro lado da rua esperando o velho se aproximar. Este entrou e sentou-se a uma mesa. Cumprimentou o barman e olhou à sua volta procurando o jovem.
Ele entrou logo em seguida. Cumprimentou o velho e pediu uma cerveja.
Saiu do bar após trinta minutos. Conversaram sobre a vida do velho, que fora um magnata do café e agora vive de royalties. Ganha bem, mas a família o abandonou por causa do seu vício. Queria ajudar o jovem, iria custear os tratamentos mais especializados.

Saiu de lá e correu para o hospital. No caminho, adormeceu.
"Filhão, venha com seu pai para a caserna esta noite. Você vai participar de um exercício comigo. Não se preocupe porque é so caminhada. Vai ser bom."
"Não quero pai. Não gosto disso e você sabe."
"Filho, você tem 16 anos ainda e você vai. Não pode decidir por si. Garanto pra você que vai ser bom."
...
"Pai, não to mais aguentando... Já estamos andando há cinco horas nesse mato e não chegamos em lugar nenhum. Pra quê?"
"Se você quer virar homem tem que saber aguentar o peso da vida."
"Você falou que ia ser bom. Quero ir embora pai."
"Só amanhã filho."
...
"Ai ai ai ai!!! Meu pé! Pai! Me ajuda!"
"Merda filho. Quebrou mesmo."
...
"Porque você levou meu filho nessa sua viagem idiota? Pra machucá-lo? Acha que ele está mais homem agora com esse pé quebrado???"
"E o que você faz por ele senão estragar o moleque e deixá-lo ser um vadio. Um inútil? Me arrependo do dia em que pedi para casar com você."
...
"A gente nem deveria ter nascido. Eu sabia que ele não gostava da gente. E ainda te machucou."
"Eu pisei num buraco e quebrei. Não foi culpa dele mas não queria ter ido. Acho que o pai não sabe o que é gostar. Não aprendeu isso no exército. Mas eu amo você mana."
"Eu também."
...
Acordou assustado e viu que passou do ponto. Parou no próximo e andou quase 20 minutos. Chegou no hospital cansado. Parecia que aquele cochilo lhe tirou o resto das forças que tinha.
O sonho estava recente na memória. As imagens, as lembranças, tudo muito real. Olhou à sua volta para ver se estava acordado mesmo.
Entrou no hospital. Passou pela recepção e chegou até o corredor dos quartos. Sua mãe foi removida da UTI no dia anterior. Estava em coma induzido.
Chegou próximo à porta do quarto e assim que avistou o ambiente, parou e voltou.
Sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.

continua.

23.3.06

Vida. capitulo 5.

Examinou o bilhete tentando encontrar algo familiar. A curiosidade estava lhe matando.
Discou para o número indicado. O telefone tocou três vezes até ser atendido.
"Alô? O que você quer comigo? Por que este bilhete na minha porta?"
"Calma meu jovem. Creio que não vá se lembrar de mim, mas me ajudou na hora em que precisava e resolvi fazer o mesmo. Mas acho que não foi a melhor maneira ter deixado um bilhete. Lhe assustei?"
"Não sei mesmo quem fala. Não me lembro de ter feito grande coisa para alguém. Fale logo o que quer! É conhecido do meu pai? Tem algo a ver com minha mãe? Como ela está?"
"Não não rapaz. Não conheço sua família. Mas andei conversando com sua vizinha e ela me disse que precisa de ajuda. Sou um amigo, não se preocupe."
"Como!? Você está me observando? Eu vou chamar a polícia!"
"Não é necessário. Sou aquele velho homem bêbado para quem você pagou uma dose. Aquilo me fez ver que estou no fundo do poço e não preciso disso. Tenho muitas posses meu filho, mas sou um homem solitário e de vida simples. Me deixei levar pela ruína da bebida e sua atitude foi de grande valia.
Hoje já faço tratamento e procuro manter uma vida melhor."
"Não sei o que dizer."
"Não precisa. Fiquei sabendo também que você está trabalhando numa carvoaria e sua mãe está doente."
"O que mais queria é que ela ficasse bem. Só isso."
"Então é nisso que vou te ajudar. Ela se recuperará. Conheço vários bons médicos."
"Acho melhor a gente se encontrar em algum lugar e conversar. Não estou acreditando muito na hitória. Vamos no mesmo bar em que nos encontramos."
"Fechado. Sábado as 14 hrs."

22.3.06

Vida. capítulo 4.

Sentiu as pernas perderem a força e gradualmente foi se entregando. Deixou seu corpo cair e a mente entrou numa viagem enloquecedora.
Foi alvejado por milhões de alfinetes que espetavam sua mente. Queria não estar no mundo. Queria naquele momento que tudo fosse uma grande mentira, que seus pais estivessem juntos novamente, na mesa de jantar, discutindo sobre qual seria o rumo das férias. Queria sua irmã presente, com ele, dando toda a força que precisava.
"Mãe, preciso conversar com você."
"O que houve minha filha? Tem que ser agora? Espera a novela acabar que a gente conversa..."
"Tudo bem mãe. Nem era tão urgente assim."
...
"Minha filha! Ah meu Deus!!! Não pode ter acontecido isso!!! Nâo!!!"
A última vez que viu sua irmã, deitada no banheiro contrastando com o chão em vermelho vivo.
...
"Irmão, você sente orgulho de mim?"
"Claro que sinto! Por que a pergunta?"
"Não sei. Aqui em casa eu não existo. Não trago orgulho pra ninguém."
Não entendeu o sentido de tudo aquilo acontecer ali, naquele momento. Das imagens, da lembrança tão viva. Sentiu o calor do alimento, sentiu o perfume de sua irmã, sentiu a maciez da sua voz.
Sentiu seu coração rachar.
Desmaiou por um dia inteiro. Acordou, não se lembrava do motivo de estar ali, mas viu no seu relógio que já era domingo. Foi abrir a torneira mas esqueceu que a água estava cortada. Saiu de casa e foi à casa de sua vizinha.
"Achei que estivesse no hospital com sua mãe. É onde você deveria estar!"
"Minha mãe? O que houve com ela?"
"Não brinque comigo. Não agora. Se arrume e vá ver sua mãe. É a única pessoa que restou na vida dela. Seu pai não irá, e você deve estar lá para qualquer coisa que ela precisar, inclusive rezando por ela."
Lembrou de tudo, mas ainda estava difuso. A realidade permanecia enevoada.
Pegou algumas roupas que sua vizinha lavou e seguiu.
Ao lado de sua mãe, viu a imagem de sua irmã. Seu coração bateu depressa e realmente sentiu a presença dela.
Havia uma infidade de aparelhos ligados e mais cinco macas uma ao lado da outra, com pessoas em estados diferentes de enfermidade.
Sentiu uma súbita sensação de vazio e avistou a companheira de sua mãe, que lia um livro.
Procurou o médico.
"Quero minha mãe bem! O senhor tem que fazer de tudo!!!"
"Calma rapaz. Não é fácil, eu sei. Sua mãe vai sair do coma, mas não sei quais são as sequelas que ela pode apresentar. Ela pode vir a parar de andar, assim como pode não ter sofrido nada. Mas estou fazendo meu melhor pela sua mãe."
"Obrigado doutor. Desculpe meu jeito ..."
"Vai com Deus filho e me ajude a deixar sua mãe nova em folha."
Voltou para a UTI e conversou com sua mãe. Falou durante meia-hora.
Se voltou para a companheira.
"Agradeço muito você estar aqui."
"Faço por ela, não por você."
"Mesmo assim agradeço. Consegui um emprego bom e agora preciso ir. Vou pagar os tratamentos dela. Quero vê-la de pé e bem."
A companheira fitou-lhe com uma expressão de orgulho, logo seguida de desprezo. Considerava-no um perdido, um artomento na vida dela. Encontrou-a na rua, surrada e ofereceu-lhe abrigo por uma noite. Ela não falou por muito tempo, apenas escrevia o que queria dizer. Quando se libertou dos seus pesadelos, finalmente falou e a companheira sentiu que seus dias de solidão e sessão da tarde estavam perto do fim.
...
Depois de duas horas de viagem, chegou no seu emrego. O lugar era afastado da cidade, mas era uma empresa organizada. Tinha mármore no chão da recepção e uma secretária bonita, com um perfume suave. Vários homens de roupa social entravam em uma grande porta negra, com um puxador cromado.
Um homem negro e alto se aproximou dele:
"Você é o indicado?"
"Sim. Mas sinto que não estou no lugar certo."
"Não está mesmo. Você tem que entrar pela portaria 5. Fica no final da mesma rua que você veio, só que à esquerda. Te espero lá em dez minutos."
Esta outra parecia um canteiro de obras. Caminhões iam e vinham, havia uma grande camada preta que recobria tudo e todos. Encontrou o homem negro novamente.
"Muito prazer. Sou seu chefe aqui. As regras são bem claras: trabalhe de acordo com as ordens que serão passadas a você e qualquer coisa que fuja à regra, me procure.
Não se envolva em conflitos. Não desrespeite seus colegas e o horário de almoço é de meio dia e trinta até as duas e trinta. Dúvida?"
"Não senhor."
"Pegue suas ferramentas no armário 890 e vá trabalhar. A chave está aqui, o vestiário é ali em frente, na porta vermelha."
Sentiu-se observado, examinado. Tenso. Trabalhava com gotas de suor frio escorrendo pela testa.
Na hora do almoço ligou para o quarto onde sua mãe estava. A companheira atendeu e resmungou algo como "nenhuma novidade".
Chegou em casa tarde. O dia passou rápido e sentia seu corpo exaurido. Foi para a casa da vizinha tomar um banho e jantar. Contou as novidades e foi deitar.
A semana passou muito rápido.
Na sexta, havia outro bilhete na porta, escrito em um papel amassado e sujo e não parecia a letra de seu pai.
Havia apenas um telefone.

continua.

21.3.06

Vida. capítulo 3.

O bilhete anônimo trouxe uma série de implicações diferentes para seu emocional. Não conseguiu dormir naquela noite. Foi no armário pegar a garrafa de Red Label que estava pela metade e entornou seu conteúdo em uma manobra. Sentou próximo à mesa e ali adormeceu.
"Filho, seu pai foi herói de guerra. Eu deveria ter servido de exemplo para ti, pois duas medalhas de honra são motivos mais do que suficientes para você já ter ingressado e trilhado um caminho melhor do que o meu. Mas sua mãe quer criar um vagabundo, um inútil e você se deixa levar.
Não aceito e não aceitarei nunca meu filho um drogado vadio. Se você fosse meu subordinado já teria mudado, seria um homem. Aprenderia a ver a escória como escória. Mas sendo escória, fica difícil reconhecer seus semelhantes."
Acordou assustado. O bilhete era de seu pai.
Sua voz rouca e grave ressoava na mente e cada vez mais alto. Era insuportável.
Procurou a garrafa para outro trago mas já estava vazia. Pegou o telefone e tentou falar com sua mãe mas se deteve quando viu que ainda eram 4 e 30 da madrugada. Teria que arcar com aquele pesadelo ainda desperto.
Uma semana se passou só vivendo das necessidades mais básicas.
Começou a cogitar outras possibilidades para passar o tempo ...
Onze horas da manhã de sexta-feira e o telefone toca.
"Bom dia. Sou o entrevistador da empresa em que você esteve. Consegui um emprego.
Se possível, passe aqui hoje até as 16 horas."
Sua sonolência lhe fez pensar que era trote. "Mereço alguma coisa ainda?"
Levantou, pegou suas roupas que ainda estavam limpas e foi para a casa da vizinha tomar banho.
Chegou na empresa e foi conversar com o gordo homem.
"Consegui uma vaga para você na empresa de um amigo. Ele é carvoeiro e paga bem, mas precisa de alguém disponível 18 horas por dia."
Aceitou. Queria mostrar ao seu pai que era homem. Começaria na segunda.
O salário era de 1500 reais. Suficiente para mudar de vida e quem sabe ajudar sua mãe. Começou a fazer planos. Abriu uma conta no banco, comprou um carro, saía nas melhores festas e encontrou a mulher perfeita, linda.
Sentiu-se revitalizado por seus pensamentos. Foi almoçar na casa de sua vizinha, mas fez questão de comprar um frango recheado. Dormiu após o almoço.
Estava se sentindo leve, novo. Disse que ia parar de fumar. Deu descarga em tudo.

De madrugada recebe uma ligação do hospital. Sua mãe teve dois derrames e estava em coma.

continua.

20.3.06

Vida.capítulo 2.

O homem levantou mais de 130 kilos da cadeira e colocou o curriculum em uma pilha à direita de sua longa mesa.
Notou que foi na menor seleção. Isso trouxe um calor que lhe subiu pelo estômago virando um suspiro pela boca.
Agradeceu o homem e saiu pela porta. A secretária estava ao telefone e as outras entrevistas foram cancelas para aquele dia.
Parou no bar ao lado. Pediu um misto-quente mas nao conseguiu terminar de comer. Estava eufórico.
Notou que o barman discutia com um senhor, que insistia em beber fiado. Pagou uma dose para o velho e saiu.
Chegou em sua casa e bateu na porta da vizinha, contar o motivo de nova esperança.
Dois dias se passaram. Prometeram-lhe apenas um dia para a resposta, não podia dar errado dessa vez. Pegou o telefone para retornar à empresa. Estava cortado, mudo.
Em menos de 20 minutos estava indo em direção à empresa. Precisava saber se fora selecionado.
Quando chegou na porta da empresa notou que estava suado e esbaforido.
Entrou e teve de esperar meia hora pois todos estavam em reunião. Quem lhe atendeu foi um dos seguranças.
O homem lhe atendeu. Falou com ele ali mesmo, de pé na recepção.
"Nós tentamos lhe falar ontem. Não obtivemos retorno e tivemos de ligar para o próximo da lista."
"Meu telefone estava cortado. Fui descobrir hoje!"
"Peço-lhe desculpas mas foi o meio de contato que deixou. Não é justo com o próximo.
Garanto-lhe que terá um emprego em breve. Posso inclusive indica-lo para outra empresa do mesmo grupo."
Não adiantava argumentar pois o homem virou as costas e saiu. O segurança indicou-lhe o caminho da saída.
Passou em frente ao bar novamente. O velho lhe fitava com uma dose de cachaça nas mãos. Ao avistá-lo, o velho levanta o copo, saudando-o.
Chegou em casa e viu um bilhete colado em sua porta.
"Paguei seu telefone. Quando é que você vai virar homem?"

continua.

19.3.06

Vida. capítulo 1.

Acordou para a vida naquele momento. Acordou cedo, preparou-se para sair e seguiu até a banca em frente à sua casa. Nos classificados estavam as oportunidades que tirariam-no daquela vida. Andou o dia todo e gastou o dinheiro que não tinha entregando o resumo da sua vida para tantas secretárias que até perdeu as contas. Edilaine, Samanta, Bruna, Carla ... fez questão de perguntar todos os nomes, pois todas disseram que entrariam em contato.
Ele esperou. Uma semana não obteve nenhum emprego. Continuava inutilizado em casa, com "pontas" jogadas no cinzeiro sobre a mesa.
A pensão foi retirada no banco. Deu pra pagar a conta de luz. Ficou faltando pra água.
Foi tomar banho na casa da vizinha e saiu novamente rodar atrás de emprego.
Dessa vez foi nas empresas que desdenhou na primeira oportunidade. Estava na terceira e não fazia questão de saber mais o nome das secretárias. Eram todas iguais.
Ao entrar na recepção, viu cinco outros rapazes com idades próxima à sua. Perguntou a um deles em quantas empresas já esteve antes dali. "Essa é a sétima só hoje. Se não conseguir dinheiro trabalhando como gente honesta, paciência. Problema deles."
Até aquele momento não tinha cogitado essa possibilidade. Sua mãe nunca mais falaria com ele se fizesse algo assim.
Mas e se não conseguisse? Não ia ficar sem água em casa e já estava perto de fazer 21 anos, perderia sua pensão.
Entrou para a sala do entrevistador. Era um homem com cara redonda e vermelha, a expressão fechada mas tinha uma foto da sua filha na mesa, o que deixou-no mais tranquilo.
Estava tenso. Sentiu que o homem não lhe tratava como uma pessoa. Que parecia mais um gado passando na contagem, sendo marcado e empurrado para o pasto. Mas se estivesse no pasto seria bom.
"Seu colégio é bom. Meus filhos estudam lá."
"É bom. Cheguei a entrar na faculdade mas tive problemas em casa e não tive dinheiro pra continuar. Mas o colégio me preparou bem."
"Vejo também que já trabalhou no Correio. Porque não continuou?"
"Eu queria. Mas meu chefe tinha uns protegidos já e eu não tava entre eles."

continua.

13.3.06

Ele que olha pro céu à procura de estrelas

Ele olha pro céu a procurar estrelas
Entrou no mar com suas chinelas, veio as ondas a levá-las
Meu par perfeito de chinelas foram-se, onde estarão agora?
Procurou no seu baú.
Procurou no seu jardim. Não estavam com borboletas.
Jardim escuro, fechado.
Chinelas lá não estavam.
Sentiu os espinhos lhe penetrando a carne macia dos dedos.
Sentiu vontade de sentar, esperar o tempo passar.
"Chinelas, por favor, nao quisera eu que fossem embora.
Entrei no mar para me banhar. Fostes arrancada de mim.
Devolve mar. Devolve.
Nunca quis eu que este mar a outro navegador entregasse MINHAS chinelas."
Ele já não sabe onde mais procurar até que vê novamente suas chinelas
nos pés de outro a trafegar.
"Com licença senhor, onde as encontraste?
Ah, meu caro amigo. O mar me contou que as tirou de quem não merecia.
E por acaso as merecia o senhor?
Trato-as com todo o amor possível. Venha cá meu caro, não sejas indigno e me conte,
por que estás tão interessado nestas chinelas?
Porque não quero mais entrar no mar."
E agora ele, todo dia olha pro céu a procurar estrelas.

9.3.06

mutila-me

Corra até a papelaria comprar seu cartão, pois como acontece em todas as datas especiais, o Dia Internacional da Mulher é quase meramente comercial. Antes de discutir comigo olhe pela janela, há dezenas de propagandas para induzir a compra de um xampu, não para parabenizar as mulheres. E enquanto a próxima marca mais vendida vai sendo escolhida cerca de 200 milhões de mulheres seguem sumidas. Mais do que simplesmente desaparecidas, mutiladas. Não menciono apenas as seis mil meninas que por dia têm parte de sua genitália retirada de maneira desrespeitosa e perigosa, mas também aquelas que são mutiladas psicologicamente e socialmente. Com regras impostas por sociedades injustas, elas seguem sem opção para decidir quem dera pensar. Mas se as mulheres ao seu redor não se encontram nessa situação, vá lá e compre seu cartão e dê valor a liberdade que elas possuem.


por Larissa C. Baran, uma moça que não escreve tão bem quanto o responsável pelo blog, mas se importa com as outras mulheres do mundo.

27.2.06

Ecleticismo

Parece nome de uma nova ordem religiosa, mas não é. É um estado de espírito.
O certo é estar eclético pois preferências derivam de uma série de estados e fatores diferentes, portanto não se gosta de tudo, literalmente, mas aproveita-se o melhor das coisas. Tanto que é humanamente impossível dispor de tempo e "cérebro" suficiente para se aprofundar nas mais diversas modalidades musicais, cinematográficas, artísticas ...
Por esse motivo que estar eclético é possível e saudável. Alienação é prejudicial. Discute-se por cada besteira. Procura subjugar os gostos de outrem mas cada indivíduo sabe o que lhe faz bem, quais são os fatores que lhe fazem sentir melhor ou pior. Impossível alguém me dizer que preciso ouvir determinada música quando estiver melancólico ou outro tipo para quando estiver irritado.
Existem coisas excelentes em todas as áres para serem apreciadas e discutidas, com sabedoria.
As vezes acho que a alienação é um braço da ignorância.

16.1.06

Quem é o preso afinal?

Assim como propagandas mal elaboradas viram lugar-comum no cotidiano brasileiro, os protestos e indignações provindas das mais diferentes partes do país também. Falar da violência, da pobreza, da fome, miséria, muito mais do que discurso político, se tornou lugar-comum.
Mas não deveria, de maneira nenhuma.
O sistema engendra uma série de medidas que nada tem de sérias. Brasileiros "livres" pagando para aqueles que tiram sua liberdade fiquem presos e com todas as regalias possíveis: alimentação, atendimento médico, segurança vinte e quatro horas,nenhuma conta para pagar e algumas cadeias propõe até que os detentos realizem trabalhos para diminuir sua pena, recebendo uma ajuda financeira (paga por você).
Agora, você está do outro lado. Anda na rua com medo de ser assaltado, não abre a janela do carro quando passa pelo centro, não fala com estranhos e até mesmo quando passa por uma blitz fica com medo de que alguma coisa ruim aconteça (ser incriminado acidentalmente por exemplo). As contas só aumentam, o seu chefe lhe parece cada vez pior e ainda defendem os direitos humanos de todos estes que tiram os seus direitos de liberdade.
Sinceramente, acho que os presos somos nós. E não podemos nem recorrer aos direitos humanos.