14.8.13

Espelho.

Havia um reflexo estranho na água. Aquelas formas disformes, com brilhos e distorções que não reconhecia traziam encantamento e curiosidade. "Este sou eu?" pensava ele. Não conseguia reconhecer-se como havia visto uma vez, no espelho da casa da sua avó. Lembrava que seu nariz era diferente, as maçãs do rosto um pouco mais avermelhadas e o cenho sempre franzido, o que gerava constantes broncas por parte de sua mãe. 

"Vai ficar todo enrugado ainda menino", ela bradava.

Passaram-se os dias e as imagens ainda povoavam sua mente. Pensava no que havia se tornado, na figura disforme que era e passou a ter vergonha de si mesmo. Evitava olhar os outros nos olhos para não perceber seus olhares de julgamento e pavor.

Cresceu mas manteve o comportamento arredio e cabisbaixo. Nunca havia procurado outro espelho novamente.

Era uma tarde quente e ele trabalhava no comércio da família. Uma menina o abordou, perguntando sobre as frutas. Respondeu e foi buscar o que ela pedia. Ela estranhou que o rapaz não olhava em seus olhos e tentou de alguma maneira fazer com que ele a olhasse. Esgueirou-se em sua frente, abaixou-se, fez algumas manobras e nada. Não entendia porque ele não queria olhá-la. Foi embora com suas frutas.

Aquilo a perseguiu durante toda a semana. Voltou decidida a descobrir!

- Metade dos homens da cidade querem namorar comigo. Já recebi um tanto de pedidos de casamento e você evita me olhar. Quem você acha que é?

- Eu? Sou apenas um comerciante!

- Não! Você acha que é melhor que eu! 

- É exatamente o contrário.

- Como assim?

- Não quero saber o que acha sobre mim, este monstro todo torto.

- Monstro? De onde tirou isso?

- Da água. Da última vez que me vi. Meu rosto mexia, todo torto. Nunca mais procurei um espelho novamente. Se pudesse sumiria do mundo.

- A água mostra que mudamos o tempo todo. O movimento dela não mostra quem somos mas o que vamos virar. Você não viu apenas a si mesmo, viu o que era, o que é e o que vai virar. Uma vez eu também vi meu reflexo na água e corri para casa, chorando. Minha avó me contou exatamente o que te falei agora. Lembro também que vi um brilho estranho e bonito. Nunca mais vi.

Nesse momento, ele olha profundamente em seus olhos.


Ela encontra o brilho que procurava.

1.7.12

O romantismo morreu.

Sejam todos bem vindos ao velório do romantismo. Aquele modelo clássico, vindo dos livros de Flaubert, das páginas mofadas de Shakespeare, não existe mais.

 Foi banido. Aniquilado.

 O bom moço (será?) da década de 60 deu lugar ao homem que busca se reencontrar numa sociedade onde a mulher não aceita mais ficar em casa cuidando do lar. Aliás, “do lar” é um termo que sequer ousa aparecer até nos comerciais mais atrevidos de sabão em pó. Os responsáveis pela sua morte somos todos nós, viventes nessa sociedade que ainda está se redescobrindo. A sociedade do ficar, do relacionamento de consumo, dos PAs e BAs, das redes sociais, das amizades irreais e das traições reais, da mulher que busca igualdade de direitos e já tem espaço cativo (e de peso) nesse admirável mundo novo e do homem que redescobre sua função e faz o caminho inverso: penetra num universo antes puramente feminino e vai depilar o peito nos salões metrossexuais da cidade.

 Mas não devemos nos sentir culpados. A morte preconiza o renascimento, a reinvenção. É o fim do modelo tradicional que dá lugar a algo ainda não definido, onde todos estão escrevendo diariamente as novas “regras” através dos encontros e desencontros.

Vamos seguindo, conhecendo e desconhecendo as regras e testando novos padrões, das periguetes ao moleque piranha, dos cafajestes às insensíveis, dos desolados e desencontrados até àqueles que encontram felicidade nos moldes habituais, todos somos responsáveis por reencontrar (ou não) o caminho das pedras (de brilhante cravejada na aliança nos dedos de uma bela ragazza). Um salve para todos nós, assassinos e reinventores do romantismo. Chega do modelo datado e manchado. Bem vindo ao novo amor e aos novos amantes (até mesmo para os micareteiros/as pois todo mundo tem direito de amar).

12.4.11

(Entre parênteses)

Tempestivamente, a mente trabalha num ritmo avassalador, testando as mais diversas possibilidades de resposta e emulando as possíveis reações para cada uma delas. Numa conversa que consegue mexer literalmente com todos os sentidos do corpo, mesmo que a vários kilômetros de distância, os dedos se multiplicam, trabalhando coordenadamente em discordância com as respostas que querem ser ditas mas que, por algum motivo, não podem sê-las naquele momento.

É exatamente nessa torrente de sentimentos que as palavras saem, ansiosas para que sejam compreendidas da maneira como foram pensadas, mesmo que o locutor sequer saiba exatamente o que quer dizer.

Intensidade.

A discrepância dos acontecimentos, numa narrativa nada linear que evoca as histórias de duas pessoas que apenas por acaso não se conheceram, faz com que uma conversa simples contenha inenarráveis revoluções, com duas pessoas que há muito não se vêem, precisam condensar uma vida em poucas horas. E o mais incrível, parece que conseguem.

O tempo corre. As horas passam em segundos. O sono se esvai. Cada palavra, cada imagem, cada intenção preenche exatamente as lacunas certas. Margem mínima de erro. Passível apenas de poucos ajustes.

Acordar noutro dia e se sentir diferente.

Tudo isso entre ( ).

22.1.11

Cotidiario II

Antônio desligou o telefone enquanto observava a polícia realizar a perícia no banheiro. Um policial tentava afastar os curiosos enquanto Antônio respondia as perguntas feitas pelo investigador. Quando terminou, escorregou para fora pela porta da sala.

Disse para si mesmo:
- Não fiz nada por Melissa enquanto ainda era tempo. Agora é tarde.

Sentou à maquina de escrever e começou a apertar furiosamente algumas teclas. Na folha, agora marcada por alguns tipos, era possível ler "David". Fitou cuidadosamente a folha e rasgou-a em diversos pedaços.

Abriu a garrafa de whiskie e tomou diretamente do gargalo. Seu coração ainda estava acelerado pelos acontecimentos anteriores e precisava de algo para se acalmar.

(...)

David era um garoto de 6 anos muito esperto, sagaz e extremamente questionador. Cabelos louros e olhos claros, transmitia toda a inocência e calma, que não possuía. Sua mãe, Marta, costumava brincar que David 'é melhor que academia". Com certa frequência atribuía sua beleza e saúde ao tempo em que passava com o filho, que amava incondicionalmente mas que em nada se parecia com o pai, moreno, de cabelos encaracolados. "Bom, deve ser um dos mistérios de Deus", Marta pensava.

(...)

Antônio pega o celular e retorna a ligação.

- Alô? - diz uma voz feminina do outro lado do aparelho.
- Este número me ligou há pouco, estou retornando.
- Antônio? É você? Que bom que ainda está com o mesmo número, precisava falar contigo...
- Marta? Aconteceu alguma coisa?
- Você precisa me ajudar! Sei que faz tempo que não conversamos, já se passaram 7 anos mas não consigo pensar em ninguém mais senão você. Sempre pude contar muito contigo quando precisei. Espero que possa me ouvir, ao menos.
- Claro que posso! Prefere conversar por aqui ou marcar em algum lugar?
- Vamos naquele café que íamos sempre no centro. Pode ser?
- Daqui a uma hora estarei lá.
- Obrigada, mais uma vez. Beijos!

E desligou.

Sentou-se na cama, com as mãos sobre a cabeça perguntando o que poderia ter acontecido com Marta.

Tomou banho, saiu de casa. Ao chegar na rua, avistou ao longe, encostado num poste, um sujeito parecido com o sujeito que batia à porta de Melissa.

Sentiu a perna travar quando o sujeito caminhou em sua direção.

3.11.10

Desencontro( )s

CO2. A fumaça estaria presente em todo o percurso, vinda dos motores a combustão dos veículos. A ineficiência mecânica que tomou conta do mundo como a peste negra o fez na europa, mas extremamente prática nos dias de hoje. Pagamos para nos envenenar e assim, os pneumologistas e otorrinolaringologistas regozijam os momentos das suas férias nos mais profundos orifícios europeus.

O despertador toca irritantemente. Como uma lâmina samurai, corta o sono que demora a aparecer e se esvai de maneira tão fácil, sem luta alguma. Decapitado, prepara-se para sair. A calça e a blusa são colocadas num golpe, como se ensaiado por décadas para apresentação nas olimpíadas. Iogurte, algumas frutas e bolachas são colocas na mochila junto com o sempre presente, computador.

O carro pega de primeira, ainda reclamando por ter sido acordado tão cedo. "Deixe-me em paz, não quero fazer esforço. Não ainda." diz o carro. Algumas idas e vindas, devido à pressa e esquecimentos até que a estrada seja tomada. Mais CO2.

As ruas são vencidas por bigas modernas. Os sinais, atravessados. As expressões fúnebres habitam os olhares dos outros romanos, cada qual em sua biga.

Próximo ao destino, erra a entrada, o que pode ter sido crucial para o encontro. Dá a volta e encontra uma vaga. Apressa-se, ainda absorto com a quantidade de informações que devem ser processadas e chega ao destino. Centenas de rostos fitam-no, curiosos sem entender o porquê dele segurar um livro nas mãos. Não haveria tempo pra leitura. Seria algum código?
Indaga funcionários sobre os horários, idas e vindas, destinos, desencontros. "Um já veio, faltam 3."

Descem pessoas de todos os tipos vindas de várias direçoes e indo para várias direçoes. Lentamente se reintegram à cidade. Nada dela aparecer.
"Este é o último." Realmente, era o último. Repensou o que podia ter acontecido. Como nos roteiros dos filmes, acreditou que ela passou ao seu lado,
sem nunca ter se dado conta disso. Não estava esperando por ele.
Mas ele acredita profundamente que algo nela tinha a esperança de vê-lo, de abraçá-lo.
Ficou apenas a certeza que compartilharam do mesmo CO2, vindo do motor que a
trouxe de volta.


28.5.10

Ocasionalidades.

O despertador ruge como um leão faminto. Com a preguiça do mundo sobre os ombros, rastejo para fora da cama enquanto tento coordenar o movimento irregular das pernas e braços. Arrumado para o trabalho, entro no carro, abro o portão e me coloco nas ruas.
Em alta velocidade, uma mulher "aproveita" o sinal que estava vermelho e avança cortando minha frente. A mesma faz uma curva e coloca o carro em frente ao meu.
Estupefato, acelero e ocupo imediatamente a vaga ao lado.

Mentalmente, projeto em menos de 1 segundo, duas cenas: a primeira onde despejo desaforos à mulher, em repúdio ao seu ato irresponsável que poderia ter colocado-me em risco. Na segunda, relevaria e tomaria maior atenção ao meu modo de dirigir, uma vez que reagir a situações de trânsito com violência só gera violência e não mudança. Optei pela segunda e me acalmei.

Aquele fato não gerou mais do que um comentário com o colega da mesa ao lado e acabei por esquecer dele.

Meses depois, ao sair de uma festa, entro em meu carro pensando somente em parar no cachorro-quente mais próximo, uma vez que os dinossauros bradavam em meu estômago. Resolvo fazer um caminho que comumente não faço e avisto um carro à distância. À sua frente, um poste que foi beijado pela dianteira do veículo. Um arrepio correu-me pela espinha.

Emparelho meu carro. O rosto desesperado da motorista, que ostentava olhos inchados por copiosas lágrimas se viram para mim: era a mesma mulher do incidente anterior de trânsito.

Ocasionalidades? São frutos de nossas decisões e por menores que pareçam, todas elas somadas geram grandes decisões. Em determinados momentos parecem peças isoladas e desconexas mas fazem parte de um grande quebra-cabeça, irregular e complexo demais para ser entendido naquele momento. Quando conseguimos avistar sua obra e sua beleza, damos a ele o nome de vida.

Saí do carro, aguardei até que o guincho chegasse para rebocar o que restou do carro dela. Ofereci uma carona até sua casa. Ela aceitou com um meneio de cabeça. Não esboçou reação até chegar em sua casa.

Ao sair do carro, perguntei pela última vez se estava tudo bem com ela. Ela acenou com a cabeça e disse apenas: "Ao invés de agradecer por hoje, lhe pedirei desculpas pela imprudência do outro dia."

E o mundo segue girando.

3.5.10

Bom dia!

Acordar. A maneira lenta de realizar tarefas simples, pois o cérebro leva um tempo para se adaptar ao ambiente, tão familiar mas ao mesmo tempo tão estranho. Braços e pernas realizam movimentos mecânicos enquanto a mente ainda se desvencilha dos traços soltos de sonhos e devaneios subconscientemente projetados.

Acordar. Despertar de um estado mental depreciativo, adquirindo novo ânimo pra realizar tarefas comuns, empreender mudanças e aceitar com mais facilidade o porvir.

Acordar. Firmar um acordo, estabelecendo concordância entre duas partes interessadas num objetivo maior, mesmo que estas duas partes pertençam à mesma pessoa.

Acordar. Sair da sonolência emocional que estabelece um escudo protetor entre o seu eu e o eu alheio, exponenciando as relações interpessoais e porque não aceitando o amor novamente e todas as consequências envolvidas?

Acordei.