3.11.10

Desencontro( )s

CO2. A fumaça estaria presente em todo o percurso, vinda dos motores a combustão dos veículos. A ineficiência mecânica que tomou conta do mundo como a peste negra o fez na europa, mas extremamente prática nos dias de hoje. Pagamos para nos envenenar e assim, os pneumologistas e otorrinolaringologistas regozijam os momentos das suas férias nos mais profundos orifícios europeus.

O despertador toca irritantemente. Como uma lâmina samurai, corta o sono que demora a aparecer e se esvai de maneira tão fácil, sem luta alguma. Decapitado, prepara-se para sair. A calça e a blusa são colocadas num golpe, como se ensaiado por décadas para apresentação nas olimpíadas. Iogurte, algumas frutas e bolachas são colocas na mochila junto com o sempre presente, computador.

O carro pega de primeira, ainda reclamando por ter sido acordado tão cedo. "Deixe-me em paz, não quero fazer esforço. Não ainda." diz o carro. Algumas idas e vindas, devido à pressa e esquecimentos até que a estrada seja tomada. Mais CO2.

As ruas são vencidas por bigas modernas. Os sinais, atravessados. As expressões fúnebres habitam os olhares dos outros romanos, cada qual em sua biga.

Próximo ao destino, erra a entrada, o que pode ter sido crucial para o encontro. Dá a volta e encontra uma vaga. Apressa-se, ainda absorto com a quantidade de informações que devem ser processadas e chega ao destino. Centenas de rostos fitam-no, curiosos sem entender o porquê dele segurar um livro nas mãos. Não haveria tempo pra leitura. Seria algum código?
Indaga funcionários sobre os horários, idas e vindas, destinos, desencontros. "Um já veio, faltam 3."

Descem pessoas de todos os tipos vindas de várias direçoes e indo para várias direçoes. Lentamente se reintegram à cidade. Nada dela aparecer.
"Este é o último." Realmente, era o último. Repensou o que podia ter acontecido. Como nos roteiros dos filmes, acreditou que ela passou ao seu lado,
sem nunca ter se dado conta disso. Não estava esperando por ele.
Mas ele acredita profundamente que algo nela tinha a esperança de vê-lo, de abraçá-lo.
Ficou apenas a certeza que compartilharam do mesmo CO2, vindo do motor que a
trouxe de volta.


28.5.10

Ocasionalidades.

O despertador ruge como um leão faminto. Com a preguiça do mundo sobre os ombros, rastejo para fora da cama enquanto tento coordenar o movimento irregular das pernas e braços. Arrumado para o trabalho, entro no carro, abro o portão e me coloco nas ruas.
Em alta velocidade, uma mulher "aproveita" o sinal que estava vermelho e avança cortando minha frente. A mesma faz uma curva e coloca o carro em frente ao meu.
Estupefato, acelero e ocupo imediatamente a vaga ao lado.

Mentalmente, projeto em menos de 1 segundo, duas cenas: a primeira onde despejo desaforos à mulher, em repúdio ao seu ato irresponsável que poderia ter colocado-me em risco. Na segunda, relevaria e tomaria maior atenção ao meu modo de dirigir, uma vez que reagir a situações de trânsito com violência só gera violência e não mudança. Optei pela segunda e me acalmei.

Aquele fato não gerou mais do que um comentário com o colega da mesa ao lado e acabei por esquecer dele.

Meses depois, ao sair de uma festa, entro em meu carro pensando somente em parar no cachorro-quente mais próximo, uma vez que os dinossauros bradavam em meu estômago. Resolvo fazer um caminho que comumente não faço e avisto um carro à distância. À sua frente, um poste que foi beijado pela dianteira do veículo. Um arrepio correu-me pela espinha.

Emparelho meu carro. O rosto desesperado da motorista, que ostentava olhos inchados por copiosas lágrimas se viram para mim: era a mesma mulher do incidente anterior de trânsito.

Ocasionalidades? São frutos de nossas decisões e por menores que pareçam, todas elas somadas geram grandes decisões. Em determinados momentos parecem peças isoladas e desconexas mas fazem parte de um grande quebra-cabeça, irregular e complexo demais para ser entendido naquele momento. Quando conseguimos avistar sua obra e sua beleza, damos a ele o nome de vida.

Saí do carro, aguardei até que o guincho chegasse para rebocar o que restou do carro dela. Ofereci uma carona até sua casa. Ela aceitou com um meneio de cabeça. Não esboçou reação até chegar em sua casa.

Ao sair do carro, perguntei pela última vez se estava tudo bem com ela. Ela acenou com a cabeça e disse apenas: "Ao invés de agradecer por hoje, lhe pedirei desculpas pela imprudência do outro dia."

E o mundo segue girando.

3.5.10

Bom dia!

Acordar. A maneira lenta de realizar tarefas simples, pois o cérebro leva um tempo para se adaptar ao ambiente, tão familiar mas ao mesmo tempo tão estranho. Braços e pernas realizam movimentos mecânicos enquanto a mente ainda se desvencilha dos traços soltos de sonhos e devaneios subconscientemente projetados.

Acordar. Despertar de um estado mental depreciativo, adquirindo novo ânimo pra realizar tarefas comuns, empreender mudanças e aceitar com mais facilidade o porvir.

Acordar. Firmar um acordo, estabelecendo concordância entre duas partes interessadas num objetivo maior, mesmo que estas duas partes pertençam à mesma pessoa.

Acordar. Sair da sonolência emocional que estabelece um escudo protetor entre o seu eu e o eu alheio, exponenciando as relações interpessoais e porque não aceitando o amor novamente e todas as consequências envolvidas?

Acordei.

5.2.10

Cotidiario I

Estava sozinho no quarto. A lua cheia ilumina a escrivaninha, deixando evidente que o café ainda estava quente. Tomou um grande gole que desceu queimando pela garganta.
O papel em branco à sua frente denunciava a falta de inspiração para escrever uma carta.
Tirou do bolso um cigarro de palha mas não encontrou um isqueiro.
Andou até a cozinha e acendeu o cigarro no fogão.

"Preciso dar uma volta."

Pegou o carro e foi até o mercado. Pensou que andar por seus corredores abarrotados de porcarias lhe trouxesse inspiração. Acabou comprando cerveja, carne de porco e uma grande faca.
Em casa, tirou a carne da embalagem, cortou dois filés e jogou na panela já aquecida. A cerveja ainda estava quente mas bebeu mesmo assim. Sem perceber, limpou a faca em sua calça.
Comeu a carne com dois ovos fritos e farinha.

"Isso está realmente delicioso."

Quando começou a assar o segundo filé, o celular toca. O som estridente sobre a mesa é acompanhado por batidas firmes à porta.

- Quem é? - diz Antônio
-Abra, preciso falar com você. - Diz uma voz feminina do outro lado da porta.
-Espere um minuto.

Antônio atende o celular mas a ligação foi perdida. "Depois ligo de volta", pensou.
Ao abrir a porta, uma mulher na faixa de 30 anos, loira e dona de belos olhos cor de mel, está vestindo um roupão amarelo cheio de manchas de café. Era a vizinha de Antônio, Melissa.

-Posso ficar aqui um tempo? Meu ex-marido me ligou dizendo que estava a duas quadras de casa e queria me ver. Eu não quero encontrá-lo. Ele parecia transtornado ao telefone.
-Claro, fique o tempo que precisar. Mas não acha melhor chamar a polícia?
-Já fiz denúncia mas nada aconteceu até então. Estou conversando com um amigo advogado.
-Melhor assim. Quer jantar? Ainda tem carne e posso fritar mais um ovo...
-Não obrigada. Mas eu gostaria de uma cerveja.
-Claro, vou pegar.

Antônio conversou com Melissa no máximo quatro vezes desde que se mudou. Ficou pensando na razão de Melissa ter escolhido seu apartamento como local de esconderijo.

No corredor ouvem-se pancadas violentas contra a porta do apartamento de Melissa. Acompanhadas por gritos furiosos. Segue-se uma discussão com outro vizinho, Renato, que afronta o homem e pede pra que ele vá embora. Enquanto isso, Melissa chora copiosamente e sufoca os sons com o travesseiro apertado contra a face. Antônio observa tudo pelo olho mágico.

-Ele já foi.
-Eu estou apavorada! - diz Melissa com o que restava de sua maquiagem escorrendo pelo rosto.
-Se quiser você pode ficar aqui essa noite. Mas prometa-me que amanhã irá procurar o seu amigo advogado.
-Obrigada Antônio, é muito gentil da sua parte mas eu já lhe causei transtornos demais. Vou me trancar em casa e torcer pra que ele não volte.

E se foi.
Antônio terminou de comer, pegou outra cerveja e voltou para a escrivaninha. Olhava para a folha em branco mas só conseguia pensar no que acabou de ocorrer.

"O que leva alguém a tal nível de irracionalidade quando um relacionamento termina? É amor ou egoísmo?"

Virou aquela cerveja e pegou outra na geladeira. No caminho lembrou-se do celular e a ligação perdida. O número não estava registrado na sua agenda mas era familiar. Ligou e uma voz infantil atendeu. Antônio ficou mudo por 5 segundos até conseguir balbuciar algumas palavras.

-Qu..quem fala?
-Aqui é o David. Já aviso que minha mãe esqueceu o celular em casa e só volta amanhã. Ai, eu não posso falar com estranhos. Quem é você?
-Um amigo dela. Eu ligo depois. Obrigado David. E não fale isso pra mais ninguém que ligar, pode ser perigoso.
-Tá bem!

E desligou. David era uma criança muito falante, sem maldade nas coisas e exatamente por isso, perigoso. Já havia prejudicado Antônio uma vez por causa de sua inocência, por sorte que não reconheceu sua voz neste momento. Mas dúvidas ficaram rondando sua mente: qual foi o motivo de sua ligação? Onde ela teria ido? E deixou David sozinho em casa?

Saiu e foi até o apartamento de Melissa ver se estava tudo bem. Bateu à porta com cuidado, pronunciando-se mas nada ouviu. Estranhou a situação e bateu novamente, dessa vez um pouco mais forte. Tentou a maçaneta e a porta estava aberta. Olhou ao redor até que sentiu um frio na espinha que se seguiu até os dedos dos pés.

Pela porta entreaberta do banheiro viu o braço de Melissa, que estava caída no chão. Correu até lá e ao entrar, tudo que viu foi uma pia cheia de comprimidos de todas as cores e o chuveiro ligado. Uma pequena poça de sangue se formava ao redor da cabeça de Melissa, que durante a queda, atingiu a privada com a lateral da cabeça.

Antônio correu para o telefone e chamou uma ambulância, explicando rapidamente o que viu. Não demoraram a chegar e enquanto os paramédicos removiam Melissa do banheiro, Antônio se esquiva da aglomeração ao redor do apartamento dela para tirar o celular do bolso e ver quem ligava.

"É o mesmo número."


19.1.10

Nos arredores de si mesmo.

Saiu à noite para trabalhar. Os faróis dos carros ofuscavam seus olhos pouco acostumados com luzes intensas. Andou por várias quadras até parar em um sinaleiro. No poste, viu os mosquitos que voavam ao seu redor, num movimento de translação. Sorriu ao lembrar-se das aulas de ciências do colégio. Transportou-se até sua infância, onde a maior preocupação que havia era com a entrega das tarefas feitas, uma vez que não precisava estudar para as provas. Sempre foi boa aluna.
O sinal abriu. Continuou caminhando com passos firmes onde o barulho dos saltos podia ser ouvindo no fim da rua, ecoando pelas ruelas que adentravam na quadra. Chegou em seu destino. Cumprimentou o segurança com um aceno de cabeça. Ao passar por ele, sabia que se olhasse para trás ele estaria admirando seu traseiro. Possuía asco dele mas sabia que era melhor manter distância.
Esperou pelo elevador, apertou o botão do quinto andar e aguardou. O chefe lhe cumprimentou com um abraço e um leve aperto nas nádegas. Enrubesceu e sentiu seu punho fechar com a raiva e adrenalina que lhe acometeram. Desferiu um golpe no peito dele, que olhou atônito e arreganhou os dentes podres que lhe restavam na boca. "O que foi boneca, teve um mal dia?". Ela sentiu que não conseguiu quebrar-lhe umas costelas, nem ao menos machucá-lo. Sentiu-se impotente e foi para o vestiário.
Podia ouvir murmúrios que aos poucos tornavam-se ensurdecedores. Colocava cada peça de sua roupa com dificuldade. Gostaria de estar em outro lugar, não aguentava mais aquele emprego. "Logo sairei daqui. Voltarei pra minha cidade."
Entra no ambiente e logo ouve alguém chamar pelo seu nome.
- Fico tão feliz em lhe ver. Às vezes penso em nunca melhorar só para estar sob seus cuidados. Você é a filha que sempre quis de volta. Obrigada, de verdade.
Era Dona Maria, que após duas mastectomias e diversas sessões de radioterapia estava de volta à UTI. Aquelas palavras mexeram com ela. Após trocar os curativos de Dona Maria, saiu da UTI e voltou para o vestiário. Chorava efusivamente, num misto de vergonha por seu egoísmo e ao mesmo tempo por saber que iria continuar ali, impotente ao seu chefe, às lembranças do seu passado. Afastou todos os pensamentos, olhou-se no espelho e só pensou nas Donas Marias que precisavam dela. Era maior que ela. "Obrigada Dona Maria."
Devolveu os 8 comprimidos de Valium de volta ao pote, guardou-o no armário e voltou para Dona Maria.

18.1.10

A arte rebuscada de ser profundo conhecedor daquilo que nunca foi visto.

Criador de teorias comuns para fatos pouco conhecidos, ele era uma mistura de sonhos e pesadelos. Dormia tarde todos os dias pois a noite era morada perfeita para todas as imagens que sua mente projetava: uma grande tela em negativo. Impressões apareciam aos poucos, disformemente imperfeitas. Rascunhos de tudo que havia sido criado nos devaneios impróprios para as rotinas impraticáveis no seu mundo perfeito. Filas de banco eram uma castração mental. O som das cidades lhe agredia os ouvidos. Todas soavam exatamente iguais mas algumas com mais de 10.000 rms. Era ensurdecedor trabalhar naquele barulho. Buscou refúgio em si mesmo. Adormeceu profundamente. Estava numa paz branca, pronunciada com cantigas de roda, risadas e o cheiro do bolo de fubá da sua avó. Quando sentou-se na relva verde, encostou sua cabeça nas folhas do gramado que esperavam de braços abertos. Disse aos céus "eu não quero mais acordar".

Neste momento, os médicos correm ao seu quarto, número 412. As pupilas dilatadas se reviram num ritmo frenético. Antônio tem um AVC e o último sonho de sua vida.

13.1.10

Naturalmente desastrados.

A Terra possui alguns bilhões de anos. O homem, alguns milhões. Certamente que o planeta já se conhecia suficiente para saber cuidar de si. Mesmo assim, viemos, assumimos o mando do planeta e o modificamos da maneira que quisemos. Existem geólogos que explicam todas as nuances da Terra, antecipam catástrofes (muitas óbvias outras nem tanto) e mesmo assim, o homem insiste em desafiar a terra.
Quando uma vespa desafia a colmeia, ela consegue algumas baixas, mas naturalmente a colmeia varre o lixo pra fora e se reorganiza, como se nada tivesse acontecido.