19.1.10

Nos arredores de si mesmo.

Saiu à noite para trabalhar. Os faróis dos carros ofuscavam seus olhos pouco acostumados com luzes intensas. Andou por várias quadras até parar em um sinaleiro. No poste, viu os mosquitos que voavam ao seu redor, num movimento de translação. Sorriu ao lembrar-se das aulas de ciências do colégio. Transportou-se até sua infância, onde a maior preocupação que havia era com a entrega das tarefas feitas, uma vez que não precisava estudar para as provas. Sempre foi boa aluna.
O sinal abriu. Continuou caminhando com passos firmes onde o barulho dos saltos podia ser ouvindo no fim da rua, ecoando pelas ruelas que adentravam na quadra. Chegou em seu destino. Cumprimentou o segurança com um aceno de cabeça. Ao passar por ele, sabia que se olhasse para trás ele estaria admirando seu traseiro. Possuía asco dele mas sabia que era melhor manter distância.
Esperou pelo elevador, apertou o botão do quinto andar e aguardou. O chefe lhe cumprimentou com um abraço e um leve aperto nas nádegas. Enrubesceu e sentiu seu punho fechar com a raiva e adrenalina que lhe acometeram. Desferiu um golpe no peito dele, que olhou atônito e arreganhou os dentes podres que lhe restavam na boca. "O que foi boneca, teve um mal dia?". Ela sentiu que não conseguiu quebrar-lhe umas costelas, nem ao menos machucá-lo. Sentiu-se impotente e foi para o vestiário.
Podia ouvir murmúrios que aos poucos tornavam-se ensurdecedores. Colocava cada peça de sua roupa com dificuldade. Gostaria de estar em outro lugar, não aguentava mais aquele emprego. "Logo sairei daqui. Voltarei pra minha cidade."
Entra no ambiente e logo ouve alguém chamar pelo seu nome.
- Fico tão feliz em lhe ver. Às vezes penso em nunca melhorar só para estar sob seus cuidados. Você é a filha que sempre quis de volta. Obrigada, de verdade.
Era Dona Maria, que após duas mastectomias e diversas sessões de radioterapia estava de volta à UTI. Aquelas palavras mexeram com ela. Após trocar os curativos de Dona Maria, saiu da UTI e voltou para o vestiário. Chorava efusivamente, num misto de vergonha por seu egoísmo e ao mesmo tempo por saber que iria continuar ali, impotente ao seu chefe, às lembranças do seu passado. Afastou todos os pensamentos, olhou-se no espelho e só pensou nas Donas Marias que precisavam dela. Era maior que ela. "Obrigada Dona Maria."
Devolveu os 8 comprimidos de Valium de volta ao pote, guardou-o no armário e voltou para Dona Maria.

2 comentários:

Daniela Slindvain disse...

Nossa! Que texto, Bru! Adorei. Você estava inspirado. rs... Na verdade, eu acho que você é preguiçoso. Deveria escrever sempre e pode me chamar para ler, pois sei que vou me deliciar. :)

Beijo,
Dani

Ju Ferrari disse...

Ler esse seu texto (umas 25 vezes mais ou menos) me inspira. =)

=* Ju