22.3.06

Vida. capítulo 4.

Sentiu as pernas perderem a força e gradualmente foi se entregando. Deixou seu corpo cair e a mente entrou numa viagem enloquecedora.
Foi alvejado por milhões de alfinetes que espetavam sua mente. Queria não estar no mundo. Queria naquele momento que tudo fosse uma grande mentira, que seus pais estivessem juntos novamente, na mesa de jantar, discutindo sobre qual seria o rumo das férias. Queria sua irmã presente, com ele, dando toda a força que precisava.
"Mãe, preciso conversar com você."
"O que houve minha filha? Tem que ser agora? Espera a novela acabar que a gente conversa..."
"Tudo bem mãe. Nem era tão urgente assim."
...
"Minha filha! Ah meu Deus!!! Não pode ter acontecido isso!!! Nâo!!!"
A última vez que viu sua irmã, deitada no banheiro contrastando com o chão em vermelho vivo.
...
"Irmão, você sente orgulho de mim?"
"Claro que sinto! Por que a pergunta?"
"Não sei. Aqui em casa eu não existo. Não trago orgulho pra ninguém."
Não entendeu o sentido de tudo aquilo acontecer ali, naquele momento. Das imagens, da lembrança tão viva. Sentiu o calor do alimento, sentiu o perfume de sua irmã, sentiu a maciez da sua voz.
Sentiu seu coração rachar.
Desmaiou por um dia inteiro. Acordou, não se lembrava do motivo de estar ali, mas viu no seu relógio que já era domingo. Foi abrir a torneira mas esqueceu que a água estava cortada. Saiu de casa e foi à casa de sua vizinha.
"Achei que estivesse no hospital com sua mãe. É onde você deveria estar!"
"Minha mãe? O que houve com ela?"
"Não brinque comigo. Não agora. Se arrume e vá ver sua mãe. É a única pessoa que restou na vida dela. Seu pai não irá, e você deve estar lá para qualquer coisa que ela precisar, inclusive rezando por ela."
Lembrou de tudo, mas ainda estava difuso. A realidade permanecia enevoada.
Pegou algumas roupas que sua vizinha lavou e seguiu.
Ao lado de sua mãe, viu a imagem de sua irmã. Seu coração bateu depressa e realmente sentiu a presença dela.
Havia uma infidade de aparelhos ligados e mais cinco macas uma ao lado da outra, com pessoas em estados diferentes de enfermidade.
Sentiu uma súbita sensação de vazio e avistou a companheira de sua mãe, que lia um livro.
Procurou o médico.
"Quero minha mãe bem! O senhor tem que fazer de tudo!!!"
"Calma rapaz. Não é fácil, eu sei. Sua mãe vai sair do coma, mas não sei quais são as sequelas que ela pode apresentar. Ela pode vir a parar de andar, assim como pode não ter sofrido nada. Mas estou fazendo meu melhor pela sua mãe."
"Obrigado doutor. Desculpe meu jeito ..."
"Vai com Deus filho e me ajude a deixar sua mãe nova em folha."
Voltou para a UTI e conversou com sua mãe. Falou durante meia-hora.
Se voltou para a companheira.
"Agradeço muito você estar aqui."
"Faço por ela, não por você."
"Mesmo assim agradeço. Consegui um emprego bom e agora preciso ir. Vou pagar os tratamentos dela. Quero vê-la de pé e bem."
A companheira fitou-lhe com uma expressão de orgulho, logo seguida de desprezo. Considerava-no um perdido, um artomento na vida dela. Encontrou-a na rua, surrada e ofereceu-lhe abrigo por uma noite. Ela não falou por muito tempo, apenas escrevia o que queria dizer. Quando se libertou dos seus pesadelos, finalmente falou e a companheira sentiu que seus dias de solidão e sessão da tarde estavam perto do fim.
...
Depois de duas horas de viagem, chegou no seu emrego. O lugar era afastado da cidade, mas era uma empresa organizada. Tinha mármore no chão da recepção e uma secretária bonita, com um perfume suave. Vários homens de roupa social entravam em uma grande porta negra, com um puxador cromado.
Um homem negro e alto se aproximou dele:
"Você é o indicado?"
"Sim. Mas sinto que não estou no lugar certo."
"Não está mesmo. Você tem que entrar pela portaria 5. Fica no final da mesma rua que você veio, só que à esquerda. Te espero lá em dez minutos."
Esta outra parecia um canteiro de obras. Caminhões iam e vinham, havia uma grande camada preta que recobria tudo e todos. Encontrou o homem negro novamente.
"Muito prazer. Sou seu chefe aqui. As regras são bem claras: trabalhe de acordo com as ordens que serão passadas a você e qualquer coisa que fuja à regra, me procure.
Não se envolva em conflitos. Não desrespeite seus colegas e o horário de almoço é de meio dia e trinta até as duas e trinta. Dúvida?"
"Não senhor."
"Pegue suas ferramentas no armário 890 e vá trabalhar. A chave está aqui, o vestiário é ali em frente, na porta vermelha."
Sentiu-se observado, examinado. Tenso. Trabalhava com gotas de suor frio escorrendo pela testa.
Na hora do almoço ligou para o quarto onde sua mãe estava. A companheira atendeu e resmungou algo como "nenhuma novidade".
Chegou em casa tarde. O dia passou rápido e sentia seu corpo exaurido. Foi para a casa da vizinha tomar um banho e jantar. Contou as novidades e foi deitar.
A semana passou muito rápido.
Na sexta, havia outro bilhete na porta, escrito em um papel amassado e sujo e não parecia a letra de seu pai.
Havia apenas um telefone.

continua.

Um comentário:

Severo disse...

caraca meu!!! ta cada vez melhor isso ae!!!!!

congratulações cara!!!